Como produzir desinformação com jornalismo e fact-checking
A crença de que basta apurar a verdade para combater fake news é um dos alimentos mais saudáveis para a pujante indústria de fake news, que só cresce com a polarização.
Obviamente eu já fui da turma que acredita piamente no combate à desinformação por meio de fact-checking e bom jornalismo. Ocorre que eles são parte do processo, não o todo.
Eu aprendi isso apanhando feio. Espero que essa newsletter ajude você a abrir os olhos para as mudanças do nosso mundo de uma forma mais saudável.
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Mês passado, o MIDIARS, Grupo de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais, capitaneado pela excelente Raquel Recuero, publicou um relatório completo sobre desinformação na pandemia. O documento traz informações valiosas sobre as mudanças na nossa sociedade e da necessidade de adquirir novas habilidades e formular novas estratégias de convivência.
Você provavelmente já passou nervoso tentando dizer o óbvio a parentes e amigos que colocam a própria saúde em risco sem sucesso. Todos passamos por isso.
Também deve ter passado nervoso quando foi atrás de instruções precisas do que fazer para cuidar da saúde e, ao conversar com alguém sobre o assunto, foi ridicularizado ou xingado como se fosse um fanático hipnotizado.
Rastreando os dados das redes sociais, o relatório traz uma explicação que muitos já esperam mas é chocante constatar: jamais debatemos saúde, o assunto pandemia foi sequestrado pelo debate político polarizado.
Como vivemos esse cotidiano, parece menos grave do que é. Eu, particularmente, já fiquei desesperada várias vezes diante disso porque trabalhei com isso profissionalmente e sei exatamente as consequências de um povo dividido numa pandemia.
Fui parte da equipe que erradicou a pólio em Angola em 2011. Lidamos na ocasião com a tarefa de vencer a resistência dos grupos fundamentalistas mais radicais, alguns que descartavam a ciência e outros que julgavam conhecer ciência e faziam a própria inventando.
Esses grupos sempre existem numa sociedade e não são eles nosso problema. A questão é que nos colocamos na condição de orbitar em torno do debate desses grupos porque estamos tratando a questão como política polarizada, não como saúde pública.
Vírus não arruma treta com vírus. Eles têm uma estratégia única e consistente para infectar uma sociedade. As pessoas só vão curar os doentes e interromper a transmissão de vírus se tiverem uma estratégia unificada e clara.
Estamos o tempo todo brigando entre nós, odiando as pessoas com quem convivemos, sem entender como conseguem pensar daquela maneira. Não tiro a razão. Ocorre que, se o comportamento de todos não for unificado, o vírus também chega na casa de quem tem razão. Ele não faz triagem ideológica.
Nós, jornalistas, também estamos em uma bolha e nos recusamos a ver. Precisamos expandir a visão e os tipos de conhecimento incorporados ao jornalismo para tomar decisões editoriais na era da Cidadania Digital. Decisões tomadas com pensamento analógico podem alimentar a desinformação.
Jornalistas vivem em um grupo social que acredita no jornalismo e não nega que o jornalismo tem problemas que precisam ser enfrentados. Ocorre que há uma porção da sociedade que passou a rejeitar o jornalismo e não será com fact-checking nem bom jornalismo que ela exercerá seu direito à informação.
Há inúmeras pesquisas internacionais sobre fake news que também entrevistam espalhadores compulsivos. Eles acreditam que os alvos de seus ataques consomem mais fake news que eles.
A impressão interessou aos cientistas, que resolveram testar várias hipóteses. Entre as bases dessa opinião está a de que muita gente considera que fake news é a produção do jornalismo tradicional. Passaram a consumir sites que imitam a estética jornalística e acreditar que aquilo sim é jornalismo.
Temos uma tendência de sempre procurar o culpado. Obviamente jamais sou eu. E caberia ao culpado tomar uma atitude para mudar a situação. E se ele não tomar? Pouco importa se o jornalismo tem ou não tem culpa, os jornalistas não podem continuar servindo involuntariamente de escada para campanhas de desinformação. Temos de aprender a enfrentar isso e é muito duro.
No caos, as pessoas buscam segurança. Quem está oferecendo isso a elas? As bolhas da internet, principalmente os grupos mais radicalizados. Eles acolhem, têm certezas, respostas prontas, lutam uns pelos outros, dão senso de propósito a cada um dos participantes, até aos que acabam linchados dois passos depois.
Segurança e sentimento de pertencer a um grupo são mais importantes que a verdade. Isso não significa que mentiras sejam necessárias para deixar as pessoas seguras, mas que outros valores também devem passar a ser pesados em decisões editoriais.
Nós vivemos um verdadeiro caos de informação, com grupos políticos aproveitando até a última gota a politização polarizada da pandemia e o jornalismo entrando no rolo compressor.
Uma pergunta: quanto do noticiário é destinado a expor intrigas sobre a pandemia e desmentir desinformação? Compare agora com quanto é destinado a dar informação segura sobre coisas práticas como, por exemplo, o isolamento dentro de casa diante da suspeita de COVID.
É possível argumentar que isso é um dever do Governo Federal. É mesmo, não discordo. Trabalhei com isso na ditadura que era, à época, a mais antiga do continente africano. Interessava o controle de discurso, a repressão, o uso político de doenças, mas não se fugia do dever de dar instruções claras, que acalmam e unem as pessoas.
Eu não estou dizendo que o jornalismo está em falta, estou dizendo que está perdendo uma oportunidade de cativar as pessoas. As reportagens sobre o que fazer na prática são menos aprofundadas e têm menos destaque do que as peças sobre o jogo político da pandemia.
Há várias causas e há justificativas legítimas, não contesto. Meu ponto é outro. Ser um porto seguro para resolver problemas práticos do dia a dia é a forma como os grupos cativam as pessoas. E elas guerreiam por esses grupos, inclusive quando não concordam 100%.
Por que não oferecer ao público com divulgação privilegiada um material em linguagem acessível, sem preocupação com a guerra política, sobre como fazer com isolamento em casa, transporte público, frequência a escolas, atendimento no comércio, por exemplo?
O foco tem ficado em se escola deve abrir ou não, se comércio deve abrir ou não, se tal político deve agir assim ou não e é um direito. Ocorre que nada disso é controlável.
Criticar o comportamento de um político já serviu para que a opinião pública o visse de forma diferente na era analógica. Na era digital, serve para que o grupo que já não gosta dele reforce suas convicções e para que o grupo fiel a ele reforce a convicção de que a mídia não presta.
Há um ponto importante agora que todos estamos inseridos em grupos, os vícios de linguagem típicos de um grupo são facilmente detectados por todos que não fazem parte dele. E esse é um ponto importante na visão do público para entender o jornalismo.
Na era da Cidadania Digital, jornalistas e público frequentam os mesmos círculos sociais, todos eles segmentados em bolhas com marcas próprias de vocabulário que só fazem sentido dentro do grupo. Mas é como sotaque, pensamos que só os outros têm. Ocorre que as pessoas identificam essas marcas de vocabulário e já deslegitimam imediatamente a produção jornalística, sem avaliar o conteúdo.
Esse uso de palavras com significados que só fazem sentido em um grupo foi um fator importante para que o vídeo da atriz Juliana Paes fosse tão incendiário. Ela foi ridicularizada pela história do delírio comunista, que faz sentido só no grupo dela. Quem riu, fala de fascismo, o que é motivo de deboche em todos os demais grupos.
Ao ver tipos de autoritarismo que não compreendem bem, os grupos fechados tentam fazer uma relação entre eles e algo que já conhecem. Acabam usando palavras que já têm outro significado para descrever fenômenos novos. Quem está de fora e não acompanhou a evolução do raciocínio só vê um bando de doidos. É como sotaque, quem tem são os outros…
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Voltemos agora ao relatório do MIDIARS. Ele aponta que o jornalismo declaratório é um dos principais combustíveis da desinformação. #VouConfessarQue me deu uma vontade danada de tuitar EU AVISEI!!!! porque junto com vários profissionais tenho feito este alerta sistematicamente.
Jornalismo declaratório é uma deterioração do jornalismo, vinda da combinação entre a crise do modelo de negócio e da exigência de produção ininterrupta e no modelo rede social: o que choca mais dá mais clique.
Daí você coloca uma matéria “Fulano diz que está chovendo”. Tem outra matéria “Fulano diz que não está chovendo”. Ninguém vai olhar na janela para conferir se está chovendo ou não e informar o público.
Isso vai virar um print distribuído nos grupos. Não vou nem entrar na discussão do paywall porque merece uma newsletter inteira, vou a outra. A maioria das pessoas não tem plano de dados, tem plano básico de celular e acessa internet por aí.
Planos básicos dão acesso gratuito a whatsapp e redes sociais, mas precisa usar o plano de dados para acessar os sites dos veículos de comunicação. Se a pessoa já tem a tendência de ficar com a informação do grupo, isso é uma bela de uma mão na roda.
Conforme a tendência ideológica, será distribuído o print do “Fulano diz que está chovendo” ou “Fulano diz que não está chovendo”. Haverá um comentário tentando localizar o grupo na informação, algo como “até o jornal tal foi forçado a admitir a verdade, que realmente está chovendo”.
O levantamento do MIDIARS mostra que a mesma coisa acontece com a produção das agências de fact checking em grupos radicalizados. São postados prints com frases que distorcem o conteúdo. Elas viram desinformação ali, entre pessoas que na maioria não têm como acessar o link original.
Essa utilização maliciosa da produção do jornalismo e de agências de fact-checking é suprapartidária. Os grupos isolados têm uma ideia prévia de cada veículo e, portanto, de todos os jornalistas que trabalham em determinado veículo. Pouco importa a realidade, tudo é visto por esse filtro.
Tenho visto o jornalismo focado nesse combate, em como derrotar a desinformação. Já fiz isso também. Quando a gente começa a jogar nesse tabuleiro, acaba se tornando tão tóxico quanto os peões do time que desejamos combater.
A maioria da população não está nessas bolhas radicais, que tanto atacam e interagem com jornalistas. Aliás, a maioria não aguenta mais o radicalismo, a belicosidade e o eterno senso de urgência para tudo que os grupos radicais implementam nas redes.
Quando a gente está apanhando, no entanto, só pensa em se defender. Nesse período de colonização do mundo digital vivemos isso. O jornalismo apanha e se defende como pode. Talvez devesse pensar em unir forças com quem confia nele. Dar mais atenção a quem confia em nós e se beneficia do nosso trabalho é o exercício mais saudável a fazer na economia da atenção.
Os grupos engajados em desinformação compartilham mais conteúdos e são mais ativos do que os grupos empenhados em informar. Temos um uso misto das redes, que confunde todos nós.
No curso Cidadania Digital, tenho uma aula específica sobre isso. Redes sociais surgiram para socialização. Daí começamos a compartilhar notícias e isso tornou-se uma forma de socializar, não mais de apenas informar-se. Por outro lado, a socialização alavancou o compartilhamento de notícias online, o que causa um problema no modelo de negócios.
Todos estamos brigando contra algo sem saber direito o que queremos. A vida em grupos polarizados nos dá a ilusão de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Não é, é aliado temporário.
Nessa fase, o jornalismo precisa descobrir que os líderes de grupos radicais conhecem muito bem o comportamento dos jornalistas. Enquanto isso, a maioria dos jornalistas nem sabe quem são esses líderes de grupos radicais que encantam multidões e como conseguem isso.
Tendemos a julgar o que não entendemos e as pessoas com quem não concordamos. É um direito. Exercer esse direito nos impede de conquistar o público que segue essas pessoas. O jornalismo tem diante de si o desafio de compreender quais são as reclamações que deixamos de ouvir e abrir bem os ouvidos de agora em diante.
A identidade humana está se digitalizando, mas a humanidade continua analógica, a lógica virtual já esta fazendo suas vitimas, seus mártires e seus heroísmos dramáticos, mas depois que os traumas passarem certamente que nos veremos de forma mais integrada. Onde todos veem o caos eu vejo a multiformidade da vida comunicativa e sim, no começo é convulso, mas o tempo da revolução agora está impregnado na cognição humana. Se a revolução constitucional se deu na França do século XVIII a revolução das massas camponesas na Rússia do século XX, e a revolução cognitiva das massas cinzentas é no Brasil do século XXI, é a revolução dos cérebros que insistem em pensar e coligir informações e sentimentos ao mesmo tempo, é pesado este trabalho informativo e comunicativo mas apesar de todos os bombardeios ofensivos da linguagem e das intenções humana a verdade épica é que a humanidade está de fato diante do paradigma da evolução mais importante: agora estamos sendo obrigados a usar nosso cérebro e isto é formidável pois indica que no futuro próximo só os mais adaptados a pensar de fato sobreviverão, pensar e saber comunicar o pensar agora tem sido questão de sobrevivência real. Parabéns pelo teu trabalho, o artigo ficou ótimo e [com fé em Santo Fernando Pessoa de Lisboa que ei de ver o incrível mundo pós pandemia nascer com ares de novidades cognitivas direto das máquinas de processamentos instantâneos que são as percepções humanas].