Passo a passo: a motivação para invadir o Capitólio
Ninguém jamais disse "invadam o Capitólio", certo? Como tanta gente entendeu a mesma coisa e fez essa loucura? Uma professora da Universidade de Washington mapeou, desenhou e eu te explico.
Muitos dos líderes populistas e radicais da atualidade têm fortes ligações com grupos radicalizados nas redes sociais. Não é raro que fãs cometam atos violentos ou tresloucados. O líder sempre se isenta de culpa.
Nós percebemos que há algo ali mas, francamente, a conexão fica difícil de demonstrar. Às vezes a gente até fica pensando se não é um lance de energia, meio espiritual, sei lá.
Natural demorar a compreender o que é novo, como a dinâmica das relações via redes sociais, mas estamos aprendendo o padrão. Já tem muita gente estudando isso, como a Kate Starbird, que é professora de Design e Engenharia Centrados no Ser Humano da Universidade de Washington.
Ela tem muitos trabalhos mostrando como a tecnologia impacta no comportamento humano e tem sido bem ativa nas pesquisas sobre pandemia da COVID. Agora, fez um trabalho muito importante, o passo a passo do estímulo à invação do capitólio COM ILUSTRAÇÕES.
CONTEÚDO X CONTEXTO
A chave de tudo é a criação e manutenção do grupo radicalizado. Não quer dizer que ele seja violento. Aliás, a maioria não é. Mas são grupos que rejeitam ideias de fora e condicionam a dignidade humana ao alinhamento às ideias deles.
Qual a principal característica de quem está em um grupo radicalizado? Jura que não está. Nem percebe que está. A gente só percebe na primeira vez em que discorda ou questiona. E a formação desses grupos é favorecida pelos algoritmos das redes sociais. Dá uma olhada nesse vídeo se quiser saber mais.
MANIPULAÇÃO PASSO A PASSO
Esse processo é chamado pela Kate Starbird de Desinformação Participativa. Ele começa com a consolidação do grupo, que não tem uma lógica hierárquica, mas se divide entre uma elite e uma massa de seguidores.
A elite é composta por políticos, assessores, marketeiros, jornalistas, influencers, canais e blogs que conquistam grandes audiências com táticas de desinformação (figura 1).
Toda informação gerada por cada um deles é movimentada por essa rede de seguidores, que se interconecta. O grupo acaba sendo formado com ajuda dos algoritmos, já que tem os mesmos interesses temáticos, então é jogado para a mesma bolha.
O primeiro passo foi a elite do grupo lançar dúvida sobre eventuais possibilidades de fraude nas eleições, sempre com dubiedade e imprecisão. É uma técnica importante porque você não tem como desmentir, já que não foi feita nenhuma afirmação.
Eleição 2020 manipulada: milhões de votos por correios serão impressos por países estrangeiros e outros. Será o escândalo dos nossos tempos! - tuitou Trump em junho do ano passado.
São meses com milhares de afirmações vagas e semelhantes a essas feitas por diversos dos apoiadores de Trump, sejam políticos, comentaristas ou influencers. Pouco importa se os fatos são críveis, importa criar o “frame” eleições manipuladas. (figura 2)
O “frame” é uma espécie de moldura ou lente pela qual aquele grupo passa a ver o mundo. Se conversa tanto sobre manipulação de eleição que, depois de alguns meses, o grupo interpreta todos os fatos assumindo que houve manipulação da eleição.
Isso serve para que a audiência comece a interagir e enxergar eleição manipulada até em barraquinha de cachorro quente. Vão começar a pipocar casos de denúncias de manipulação e fraude eleitoral, com vídeos e fotos.
Alguns serão forjados, mas a imensa maioria não será. Como assim? As pessoas já acham que está havendo a manipulação, então qualquer coisa que acontecer fora do script elas passam a ver como prova de que é manipulação. (figura 3)
Daí elas postam na internet, os ativistas de grupos menores começam a passar para aqueles da elite que haviam falado no assunto e ganham reconhecimento. De repente, eles são citados ou repostados por grandes influenciadores, jornalistas e políticos.
Os vídeos com denúncias falsas, a grande maioria feita de boa-fé por pessoas que, por exemplo, tentaram votar do jeito que se vota em outro Estado ou no lugar errado, tornam-se uma moeda preciosa para ganhar notoriedade, likes e reputação no grupo. (figura 4)
Quando as elites políticas começam a repostar as histórias, elas reforçam o frame e surge uma espécie de luto coletivo, importantíssimo na manipulação política. O que tira a pessoa de trás do computador para as ruas é esse sentimento de luto coletivo. (figura 5)
As audiências vão repassando essas postagens e ecoando o luto coletivo. Daí começa a revolta e aparecem as primeiras postagens com chamados à ação coletiva, violência e palavras de ordem. (figura 6)
Logo em seguida, as elites dos grupos criam a hashtag #StopTheSteal e começam a organizar protestos em todo o país, onde são repetidos, reforçados e incentivados os falsos relatos de manipulação eleitoral. Os protestos vão se radicalizando até que chegamos a 6 de janeiro.
Durante meses os ídolos políticos dessas pessoas insistiam na ideia de haver uma POSSIBILIDADE de fraude eleitoral. A cada indício desmentido surge outro até que fica impossível rastrear todos, mas a ideia de POSSIBILIDADE está impressa na mente das pessoas. Elas vêem tudo por essa lente, olham os fatos e não perguntam SE há manipulação, procuram ONDE há manipulação. Vão achar, mesmo que não exista. E obviamente ficarão muito indignadas.
Não há uma hierarquia, há uma elite e uma gigantesca massa de seguidores, com uma intensa troca entre os dois grupos via redes sociais. São grupos que não raro refutam qualquer ideia de grupos contrários, não colocam à prova as próprias crenças. Entendem que há intenções malévolas nos indivíduos de outros grupos.
Alguns dos que cometeram atos violentos realmente acreditavam ser patriotas em defesa da democracia, que havia sido roubada. Participar desse frenesi dá propósito à vida de muitas pessoas. Sentir-se parte de algo, principalmente de algo importante, é muito mais precioso do que a verdade.