Realismo Ingênuo: o combustível do cancelamento
Uma característica humana que a maioria de nós ignora ou prefere ignorar quando o bicho pega é pano de fundo de quase todos os conflitos de internet
Juliana Paes, doutora Luana, doutora Nise, Samantha Schmütz. Dependendo da bolha onde você foi jogado elas foram malhadas ou beatificadas esta semana.
Se você está na bolha que esculachou Juliana Paes e doutora Nise, presenciou aplausos efusivos à doutora Luana e Samantha Schmütz. Se você está na bolha que esculachou doutora Luana e Samantha Schmütz, viu a defesa cerrada e enérgica de doutora Nise e Juliana Paes.
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Em ambos os casos, você deve achar que eu estou exagerando quando digo esculachar. Agora não pode nem mais criticar uma pessoa pública que faz algo em público? Chamar o que vivenciamos de “crítica” começa pelo Realismo Ingênuo e termina na dinâmica da Cidadania Digital.
Para os psicólogos Jay Van Bavel e Dominic Packer, o Realismo Ingênuo é o principal fenômeno que estimula conflitos entre pessoas e grupos.
Trata-se do fato de assumirmos que enxergamos o mundo de forma objetiva e racional e os grupos com os quais nos identificamos também são objetivos e racionais na sua visão de mundo.
Tem ainda o adicional de supormos que sabemos mais sobre os outros do que os outros sabem sobre nós.
O problema começa quando nos deparamos com uma visão contrária. Assumimos imediatamente que ela está errada, já que a nossa visão é objetiva, racional e foi corroborada pelos grupos que admiramos.
Ao tentar entender por que algumas pessoas têm opiniões tão absurdas, a gente não sabe se elas são burras, se precisam estudar mais, se enlouqueceram, se são preconceituosas, estão cegas pela ideologia, são pagas para dizer aquilo.
Ocorre que ninguém enxerga o mundo de forma objetiva e racional. Nós enxergamos o mundo pelas lentes dos valores segundo os quais o compreendemos. Todas as outras pessoas também. E todos achamos que temos uma visão racional e objetiva, portanto o oposto é necessariamente incorreto.
Por mais certeza que você tenha da sua posição, ela não é racional e objetiva. Além disso, você não sabe tanto sobre o outro quanto julga saber e talvez ele saiba mais de você. São preconceitos que todos temos, é natural e ter essa consciência nos possibilita conviver melhor e convencer melhor.
Na era da Cidadania Digital, o Realismo Ingênuo passa a ser ainda mais importante, já que a gente está o tempo todo vendo opiniões e também o tempo todo em contato com grupos que admiramos.
A velocidade da comunicação faz com que existam mais episódios em que julgamos a visão alheia sobre o mundo de acordo com a ilusão de que temos uma avaliação objetiva e racional.
E daí voltamos ao esculacho que alguns chamam de crítica. Essa muleta retórica era utilizada inicialmente só por milícias virtuais bolsonaristas, mas vi esta semana muitas pessoas de quem eu gosto e respeito cruzando esta fronteira.
Eu sinceramente não creio que as pessoas façam isso só por maldade ou porque são burras. Colonizamos o universo digital, ainda não compreendemos as regras dele, focamos apenas no conteúdo, ignoramos o peso do contexto e falta auto-conhecimento em áreas importantes para avaliar nossa relação com os outros.
Digo isso porque cometi todos esses erros já e vi claramente tudo isso em mim. Dói muito descobrir apanhando como essas coisas funcionam e como podemos usar as redes em vez de ser usados por elas. Espero que a newsletter ajude você.
No curso Cidadania Digital, tem uma aula inteira e vários conteúdos de texto sobre avaliação dos grupos em que a gente está, como ver se eles têm tendência de se radicalizar. A principal dica é observar como se lida com a dignidade humana.
Dignidade é inerente à condição humana e inegociável. Quando a dignidade passa a ser relativa e atrelada à aderência aos seus valores ou valores do grupo, temos autoritarismo e tendência à radicalização.
O Realismo Ingênuo nos faz pensar que sempre os outros são radicais e só os outros se deixam engambelar por teorias conspiratórias, que nós não nos iludimos. Essa certeza é o que alimenta os vermes do autoritarismo e da radicalização que vivem latentes na nossa alma.
As pessoas que passaram o dia malhando a atriz Juliana Paes realmente acreditam ter uma visão objetiva de mundo. Nessa visão, a postura dúbia sobre o presidente da República significa apoio velado. Como este apoio velado vem de uma pessoa pública, é necessário unir o máximo de vozes para dizer que é errado porque pessoas estão morrendo e é urgente que isso seja parado. O mesmo acontece nos outros três casos.
É um direito fazer isso. Meio ridículo porque não tem efeitos práticos e é anticiência, mas o direito à imbecilidade não foi revogado e jamais será. Argumentos contrários ou fatos que desmintam narrativas funcionam quando a pessoa está aberta a opiniões opostas, não quando a opinião é a identidade social da pessoa.
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O Realismo Ingênuo também está presente na crença de que somos adeptos da ciência nas informações sobre a pandemia. Se você não é cientista, como eu também não sou, é adepto da confiança, não da ciência. Eu pergunto a cientistas em quem eu confio e confio na opinião deles, não sou qualificada para avaliar a questão em si.
Quando se vê uma opinião anticiência, alguém que não é cientista falando frontalmente contra cientistas, assumimos que ser a favor da ciência é defender com paixão o lado contrário do que essa pessoa diz. Só que não é. Isso também é ser anticiência. Ser a favor da ciência é defender o método científico e a impermanência.
O exemplo clássico é o da origem laboratorial do coronavírus. Há uma narrativa de que a China criou o vírus em laboratório com objetivos nefastos. Quem é pró-ciência e contra fake news fica doido quando lê um negócio desses. Daí a pessoa já levanta a bandeira de que é impossível o vírus ter sido criado em laboratório.
O desespero com a máquina de desinformação é tanto que vários dos mais respeitados veículos de comunicação do mundo assumiram essa postura. Redes sociais começaram a derrubar posts e perfis cogitando origem laboratorial do vírus. Ocorre que isso jamais foi descartado.
Há décadas os cientistas em todo mundo fazem experimentos com o coronavírus, inclusive criam novas variantes dele em laboratório. São mais de 5 mil catalogadas. Descartou-se que tenha sido algo feito e solto agora, mas não que seja uma dessas variáveis que escapou e se desenvolveu.
Fiz um artigo na Gazeta do Povo esta semana falando de vários temas da pandemia que estão encalacrados no fla x flu dos grupos de internet. Se um fala algo, o outro tem de ser contra a todo custo. Todos os grupos obviamente têm pessoas más, mas a maioria está tentando acertar. E, óbvio, um grupo pensa que o outro está errado, é burro, tem intenções nefastas…
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E daí voltamos ao Juliana Paes Gate. As reações são proporcionais à importância do vídeo? Não, elas são proporcionais à importância que a segurança de estar no grupo que admiram tem para as pessoas. Por isso elas postam “meu delírio comunista é”. Primeiro para dizer a si mesmas que não deliram, são racionais. Depois para reafirmar o pertencimento ao grupo e a racionalidade do grupo.
É um direito fazer isso. E tem consequências, já que todos os grupos fazem isso, uns com mais e outros com menos virulência. O debate fica impossível, a militância deixa de existir porque o convencimento é um valor inexistente e a única coisa importante nesse momento de caos é ficar cada vez mais fechados em grupos.
O assunto vai ecoando nos grupos e se encomprida de uma forma desproporcional. O tempo e a energia gastos nesse tipo de embate não são proporcionais ao efeito dele na modificação da nossa realidade, mas são proporcionais à importância que a segurança de estar no grupo certo tem para cada um de nós.
Se você chegou até aqui já deve estar no desespero porque parece que estamos presos em uma distopia, uma realidade paralela em que o embate e a desumanização são as regras de convivência. Agora tenho boas notícias. Você já deu um passo importante para quebrar este círculo vicioso.
O principal talento da mente humana é reconhecer padrões. Gosto de chamar isso de “Efeito Mister M”. Aliás, inventei isso hoje e nem sei se é bom ou cafona. Todas as vezes em que nós aprendemos um padrão, nosso cérebro automaticamente enxerga esse padrão. (Às vezes reconhecemos falsos padrões e isso dá uma confusão danada, mas isso é assunto para outra newsletter e de uma aula inteira do curso Cidadania Digital.)
Hoje você aprendeu dois padrões importantíssimos da nossa mente, sobre os quais precisamos estar atentos na era da Cidadania Digital:
1. Realismo Ingênuo
2. Pertencimento ao grupo é mais importante que fatos
Esse é o piloto automático de todos nós. Ocorre que nosso cérebro é uma máquina incrível. Você aprendeu o padrão, então passa a reconhecer o padrão praticamente por instinto e consegue quebrá-lo para impor sua consciência e sua vontade às decisões. Pode não dar certo sempre, mas dará na maioria das vezes.
Outra dica, relacionada à questão da dignidade humana, é prestar mais atenção nas suas atitudes e nas atitudes das pessoas que te ouvem do que nas dos adversários. Quando vemos alguém fazer algo que julgamos chocante, parece que toda reação contrária é justificável. Se o grupo que admiramos justificar, é um passe livre. Isso vira uma competição de quem vai mais longe, só que não se chega a lugar nenhum.
No final das contas, em vez de colocar as regras do jogo, a gente acaba se deixando pautar pelo adversário. Em vez de agir para ser o exemplo daquilo em que acreditamos, somos provocados a apenas reagir e ter comportamentos que nós mesmos reprovamos.
A convivência da Cidadania Digital facilita este processo, é um aprendizado de todos nós. Se até eu, que sou estourada e tretista, estou aprendendo, você vai conseguir com certeza. As redes nos trouxeram possibilidades incríveis de conexão, aprendizado, evolução profissional, conhecimento, autocuidado. Agora é nossa hora de aprender a dominar as redes sem nos deixar dominar.
Espero que tenha gostado e indique a newsletter a alguém de quem você gosta!!! Até sexta que vem.